Na periferia, você vale o que tem, mano
Podia ser apenas uma citação de "1 por amor, 2 por dinheiro" dos Racionais Mc’s, mas a frase saiu da boca de outra nome conhecido do Capão Redondo - o escritor e fundador da marca 1dasul, Ferréz. Ferréz foi um dos manos entrevistados na nossa grande reportagem sobre identidade, consumo e juventude periférica. Uma investigação feita sobre jovens da quebrada por jovens da quebrada e que acabou levantando vários questionamentos sobre nossa própria identidade.
Pra contarmos essa história, corremos atrás de dois personagens que fogem do estereótipo que costuma ser a cobertura das quebradas na grande mídia: Denis, um jovem evangélico de Americanópolis, zona Sul, cujo estilo passa longe do clichê do paletó e Bíblia na mão; e a Nairóbi, uma tombadora, falante e estilosa, da Cidade Tirandentes, zona Leste, que ilustra bem essa nova faceta do movimento negro. Um evangélico, clássica figura do cenário periférico; e uma tombadora, nova cara do Brasil. Parecia um equilíbrio massa pra retratar a juventude e seus hábitos de consumo.
Colamos com os dois nos seus rolês, nas suas compras e nas suas casas. Conhecemos suas famílias, seus passados e fomos pedir ajudar pra duas psicanalistas para descobrir como nossas personalidades são influenciadas pelas marcas, pelas famílias, pelo desejo de consumo e pelo desejo de aceitação. Essas reflexões e descobertas formam essa grande reportagem multimídia com webdocumentário, infográfico interativo, quiz, fotos e textos. Pronto pra embarcar na #IdentidadeParcelada? Cola com a gente nesse rolê pelas quebradas se $P!".
Se São Paulo tivesse apenas 100 habitantes, 16 seriam jovens entre 15 e 24 anos. Sete seriam moradores das periferias. Cinco destes seriam pardos e/ou pretos e do sexo masculino. E todos teriam renda familiar até R$ 2.500,00 mensais – sendo que apenas três receberiam o teto. Não parece lógico que esses sete consumam mais do que os outros nove, que, além de serem maioria, também possuem uma renda familiar dez vezes maior do que a sua:
"Não espere nada do centro, se a periferia está morta, pois o que era velho no norte, se torna novo no sul" já cantavam Chico Science e Fred 04 nos anos 90. Criada em meio à violência e pobreza, a juventude periférica usa da criatividade pra lançar tendência na moda, na música, nas gírias e nas artes. Muitos dos gêneros mais influentes da cultura pop - como o punk e o rap - nasceram na quebrada. Aqui mapeamos os estilos mais comuns das periferias de São Paulo. Do chavoso ao metaleiro, do swagger ao good vibes: todos eles, por mais diferentes que sejam, se encontram em determinados aspectos, sejam visuais, musicais, comportamentais ou históricos, resultando numa grande rede os une.
A gente não sabia, mas a apuração dessa pauta começou lá em março, no primeiro dia de aula, quando nos apresentamos pros colegas e professores. Foi nesse dia em que percebi: todos nós queremos e estamos transformando nossas realidades de alguma forma. Da nossa forma, ao mesmo tempo em que nos transformamos também.
Recebemos uma missão jornalística pros meses seguintes: produzir uma grande reportagem multimídia com o tema JUVENTUDE E CONSUMO. Embora sejamos todos jovens e consumidores, eu sabia que essa seria uma missão complicada. Afinal, o quão abrangente pode ser esse tema pra cada um? Mas se achamos que o único desafio seria encontrar recorte, pensar em pauta, personagem e ir pra rua, nos enganamos. Além de um trampo, descobrimos, através das sensibilizações propostas pelo Vicente, educador e coordenador pedagógico, que precisaríamos ir além de colocar a mão na massa e mostrar resultado: foi preciso se olhar por dentro, se entrevistar, sabe? “Eu, jornalista de mim mesmo…”. E pro Ale, meu colega de turma, isso foi bem importante: “ser jornalista de mim mesmo ajuda bastante a me rever. Na minha quebrada eu me sinto muito sozinho, e quando to na Enois sei que existem outros jovens com o mesmo objetivo que eu: ressignificar o mundo”.
Na aula que eu mais gostei, a de Jornalismo Compassivo, ministrada pelo Guilherme Valadares do site Papo de Homem, fiquei surpresa ao descobrir quão diferentes são as razões pra cada um estar na Escola de Jornalismo: alguns já estão na Universidade, outros estão só pra experimentar e ver o que dá, outros usam como ferramenta política, e assim vai. Uma das coisas que temos em comum, porém, é a vontade de questionar o mundo. Só que a cada visita dentro de nós, percebemos que NOS questionar é o primeiro passo pra, depois, dominar o mundo! (RÁ). A Beá, uma das colegas que já tá na Universidade, compartilhou: “com a matéria eu fiquei mais fora da minha bolha. Tive contato com ideias conservadoras com as quais me preocupo e me posiciono constantemente contra. Em uma das entrevistas quase não pude participar por ser mulher”.
Buscamos e trouxemos algumas das nossas referencias pessoais do que é um bom jornalismo, do que gostamos dentro desse universo que, pra muitos, ainda era novidade e fomos questionados. Pelo Fred, jornalista e coordenador pedagógico do curso, pelo Vicente, por nós mesmos. Afinal, por qual razão escolhemos esse meio, e não aquele, para nos informar? O que nos representa?
Mais do que consumidores de informação, assumimos também a responsabilidade de reportar histórias que nos pareciam interessantes e pensamos outras formas de contá-las. Com cuidado, pra não ofender outras pessoas. Mas de um jeito que a gente se visse ali. Sabemos da importância de nos sentirmos representados, e sentimos a carência de respeito e representatividade por parte de quem nunca nos olhou além de personagens que compõem o mesmo enredo de sempre.
Fomos desafiados a pensar em pautas que tivessem relação com juventude e consumo, e estruturá-las pra apresentar na Vice, em uma reunião de pauta. A primeira. O objetivo era que os jornalistas de lá, que já estão nesse corre há mais tempo, ouvissem as nossas propostas e também nos questionassem sobre as escolhas. Voltamos confusos, mas ao menos compreendendo que o recorte precisava mesmo ser o de jovens das periferias, e que, por não sermos todos iguais, na maioria das vezes é nosso estilo que nos diferencia. Ou, pelo menos, é assim que as pessoas ao redor e nós mesmos nos enxergamos.
Quem é da quebrada ou conhece os termos, sabe que um jovem “chavoso” aparentemente se diferencia de um “swag” pelas marcas que consome, pelas referências musicais, pelo rolê. E isso acontece com todos os outros grupos aos quais cada jovem faz parte. De início, queríamos saber como jovens desses dois grupos viam suas marcas favoritas nas versões originais e falsiês. Como eles se sentiam usando um e outro. Pensamos em apurar os dois processos de produção dos mesmos produtos, e lançar a pergunta: “Existe original?”. Ao mesmo tempo, ainda achamos que outros grupos poderiam contribuir, então passamos a observar melhor os jovens das quebradas onde moramos, e fizemos uma lista de grupos que estão por lá, além do que a gente já tinha. Em uma outra aula, definimos que teríamos dois personagens. Entre as sugestões, surgiram os “tombadores”, movimento de jovens negros que têm como objetivo o empoderamento do povo preto através da estética e jovens evangélicos, afinal, igrejas evangélicas são presença forte nas quebradas. Votamos, e escolhemos que mudaríamos os perfis dos jovens, a pauta e o olhar pra ela. Aparentemente, uma parte da questão estava resolvida: tínhamos dois perfis de jovens periféricos, com identidades visuais diferentes. Mas ainda faltava entender onde o consumo entrava nisso tudo. Foi a partir das reflexões sobre a quantidade de influências que adquirimos ao longo da vida, as transições de grupos e estilos tão comuns na adolescência, questões sociais que envolvem jovens que vivem na periferia, a relação do TER e SER, e a construção diária da nossa identidade enquanto seres que buscam pertencimento, surgiu o que é a nossa pauta final: Como o consumo contribui na construção da identidade do jovem de periferia?
Pensamos formatos e produtos que gostaríamos de entregar a partir do que fosse descoberto, do que fosse trazido pelos personagens, por uma pesquisa com especialistas, pelos debates que tivemos em aula e a partir do que sabemos e vemos sobre jovens das periferias. Escolhemos, então produzir um mini doc com duração de 8 minutos, um infográfico e um quizz.
A Escola de Jornalismo é uma iniciativa da Énois | Inteligência Jovem, uma agência escola que trabalha na formação de jovens e depois constrói, com eles, diversos produtos de comunicação, como revistas, sites, campanhas etc. Também desenvolvemos pesquisas e estratégias de engajamento para esse público.